Título: O mar que nos cerca
Título original: The sea around us
Autora: Rachel Carson
Tradução de Antonio Salatino (professor titular do Instituto de Biociências da USP)
Editora Gaia
Ano da publicação: 2010 (copyright de 1950, 1951, 1961)
O último livro de que falei aqui no blog também foi um livro de Carson. Publicado em 1962, o Primavera silenciosa traz uma pesquisadora, escritora e ambientalista profundamente combatente, sendo a leitura extremamente árdua, como cheguei a comentar. Apesar da distância temporal e do fato de que produtos como o DDT – denunciado por Carson por conta de seu caráter extremamente nocivo à vida – não serem mais utilizados hoje, a leitura é difícil por conta do show de horrores e de ignorância descrito. É preciso ter estômago, especialmente quando vemos a história e os erros se repetirem.
O Mar que nos cerca é de caráter distinto. Este livro nos traz uma narrativa de encantamento, de maravilhas e descobertas. Como é delicioso “ouvir” Rachel Carson desenrolar diante de nossos olhos atentos as belezas e mistérios dessa vastidão azul, ainda tão incompreendida! Foi por este livro que Carson recebeu o National Book Award, tendo sido eleita para a Academia de Artes e Letras dos Estados Unidos e, durante a leitura, entendemos o porquê. A escolha de palavras é precisa e Rachel Carson soube dosar beleza narrativa com informação científica. No prefácio à edição de 1961, a autora está ciente dos avançados científicos alcançados na década que se seguiu à primeira edição deste livro, diz: “tratava-se de uma tela enorme, em que o artista indicava o esquema geral de uma magnífica pintura, na qual, contudo, grandes áreas vazias aguardavam o toque esclarecedor de seu pincel.” (p.8) E que artista ela própria foi!
Essa feliz conciliação entre arte e ciência já dá as caras no próprio prefácio: “Em vez de um amplo e constante fluxo de água, como o de um rio, sabe-se agora que a corrente do Golfo consiste em estreitas e velozes línguas de águas tépidas que volteiam em espirais e redemoinhos.”(p.10) O texto flui com tamanha beleza que é quase inevitável repeti-lo em voz alta, apenas para nos deliciarmos com as palavras ecoando em nossa própria boca. Ao mesmo tempo, as informações estão todas lá. De fato as correntes marinhas se apresentam como corpos de água distintos a fluírem no meio oceânico; de fato as águas do Golfo são tépidas, sendo justamente essa a razão de a região costeira da Europa apresentar invernos mais amenos do que áreas de mesma latitude na América; e realmente não se trata de um fluxo exatamente linear, mas marcado por vórtices, tais como foram verificados na nossa tão próxima corrente do Brasil. Uma delícia de texto.
O livro se organiza em três partes: I. O mar progenitor, II. O mar inquieto e III. O homem e o mar que o cerca. A primeira parte é dividida em oito seções que perpassam as histórias de formação dos oceanos e da Lua, com maravilhosas descrições dos recônditos abissais, da vida encontrada nas trevas de extrema pressão e frio, percorrendo as superfícies e regiões fóticas, a rica biodiversidade do micro e do macro e o nascimento de ilhas. Alguns dados apresentados requerem atualização (algumas feitas pela própria autora, outras pelo tradutor, todas em notas de rodapé) – a teoria de nascimento da Lua que é apresentada, por exemplo, é a de que nos primórdios da Terra as marés eram de um material sólido e viscoso, marés essas propiciadas pela força de atração do Sol. As marés teriam sido gigantescas a tal ponto que uma porção dessa massa teria se desprendido da Terra, dando origem à Lua. Atualmente, a teoria mais largamente aceita é a de que a Lua foi resultado de uma colisão entre a Terra e um corpo celeste de dimensões semelhantes às de Marte. Mas como ouvi meu marido dizer em uma reunião de trabalho dia desses (o que a pandemia não tem feito, não é mesmo?), dados desatualizados também têm seu valor, a partir do momento em que aprendemos a compreender o que trouxeram e de que modo foram modificados; a compreensão do processo requer um aprimoramento do olhar.
Ao contar-nos a narrativa do surgimento da vida a partir do mar e de como muitos organismos encontraram seu caminho de volta – como é o caso das baleias, que teriam surgido nos mares, se tornado terrestres para, então, voltar ao mar -, Carson nos faz refletir sobre o nosso próprio retorno, um retorno “mental e imaginativo” (p.40), e nos traz maravilhosas narrativas de desbravadores do desconhecido. Entre os encantamentos de seu texto, vamos revisitando histórias, conceitos, aprendendo sempre – nesta primeira parte do livro, por exemplo, descobri que, caso toda a pressão existente nos oceanos, por conta do peso da coluna de água, fosse milagrosamente relaxada, “o nível do mar se elevaria aproximadamente 28 metros em todo o mundo” (p.70). E achamos graça quando descobrimos que Magalhães, querendo conhecer qual a profundidade do oceano, atirou um fio convencional, quando navegava pelo Pacífico, um fio que não possuía mais do 365 metros e, vendo que o fio não tocara o fundo, “Magalhães declarou que estava sobre a parte mais profunda do oceano” (p.77)
A segunda parte do livro, O mar inquieto, trata das forças que colocam os oceanos em movimento e dos efeitos dessas forças. Carson discute a importância dos ventos, da formação das ondas – aliás, descobrimos que quem primeiro mediu a força de uma onda oceânica foi Thomas Stevenson, pai do escritor Robert Louis Stevenson (quem nunca leu A Ilha do tesouro?)-, a influência da rotação, os movimentos de marés, a relevância da topografia de fundo, os movimentos das águas associados às diferenças de densidade. Nesta parte, Rachel Carson nos oferece, dentre tantas preciosidades, uma explicação simples e clara sobre o porquê de a Lua estar se afastando da Terra e o porquê de, muito provavelmente, o nosso dia hoje ser vários segundos mais longo do que nos tempos da Babilônia: “(…) com o passar de milhares de anos, a Lua retrocedeu, por influência do atrito das marés que ela própria cria. O próprio movimento da água sobre o leito do oceano, sobre a crosta rasa dos continentes e sobre os mares internos carrega em seu âmago o poder que está lentamente destruindo as marés, porque o atrito por estas provocado vai gradualmente diminuindo a velocidade de rotação da Terra. (…) De acordo com as leis da mecânica, com o retardo da rotação da Terra, há uma aceleração da translação da Lua, com o que a força centrífuga a leva para mais longe“. (pp.168-169)
A terceira parte do livro é talvez aquela que Carson optasse por complementar ou reescrever, imbuída certamente de enorme indignação. Em O homem e o mar que o cerca Carson aborda a importância dos oceanos para a regulação das temperaturas e clima da Terra, e fala muito também sobre todas as riquezas que os oceanos teriam a nos oferecer, desde suas riquezas minerais até à biodiversidade e recursos pesqueiros. Jeffrey S. Levinton nos alerta no posfácio para o fato de que, na época, o aquecimento global e os problemas associados à pesca predatória não eram temas em pauta. Estou certa de que Carson levantaria dados e pesquisas e brilhantemente nos escreveria um capítulo acerca do peso de nossa pegada neste planeta. Mas quis o destino que ela partisse antes de tais temas virem à tona e o alarme soasse.
Esta foi uma das melhores leituras que realizei este ano (e tenho conseguido ler bastante – cumprindo minha promessa de início de ano de ler quatro livros por mês). Recomendo, sem pestanejar, não apenas para os amantes da oceanografia (para estes a leitura desta obra é um dever), mas para todos aqueles que apreciam uma boa narrativa recheada de informações consistentes.
Um grande abraço e excelentes navegações.
Rô.