Diário de Bordo

Reflexões de jornada

Antes de iniciar o post de hoje, gostaria de lembrar que esta semana aconteceu a XV Semana Temática de Oceanografia, organizada por alunos da graduação do Instituto Oceanográfico da USP. As gravações das palestras, mesas-redondas e trabalhos estão disponíveis no site da XV STO. Então vá lá, aproveite, porque há muita coisa boa, muitas informações atuais sobre o estado da arte, oportunidades de trabalho, discussões ambientais sobre os manguezais, vale muito a pena. Não perca.

Também quero lembrar que já estamos chegando na metade do mês de novembro e, em nosso calendário oceanográfico, já homenageamos a grande cientista Marie Curie, vencedora de dois prêmios Nobel, a primeira mulher a receber esse prêmio, e que se tornou uma inspiração para todas as jovens que aspiram a ser cientistas; nesse mesmo post buscamos incentivar a divulgação da ciência feita por mulheres. Participe lá no Instagram! Homenageamos também Carl Sagan, um ótimo representante do “afins” aqui do nosso Oceanografia e afins. Divulgador da ciência que nos deixou várias mensagens, dentre as quais destaco uma das mais valiosas: precisamos fazer ciência e compartilhar ciência. Portanto, amanhã, vamos todos votar com consciência.

Hoje eu gostaria de compartilhar um pouquinho do meu percurso na oceanografia, bem como algumas reflexões envolvidas. Acho que estava devendo isso por aqui e, acredito, minha trajetória e minhas ponderações podem servir a você, navegante, na construção de sua própria história, nem que seja com um tijolinho.

Se você me acompanha aqui no blog, já deve saber um pouco da minha trajetória. Aos 19 anos entrei na FFLCH-USP, onde cursei a graduação (bacharelado seguido de licenciatura) em Letras, me engajei em pesquisas do arquivo e da obra do escritor pernambucano Osman Lins (autor da peça de teatro Lisbela e o Prisioneiro), tendo feito duas iniciações científicas Pibic, às quais se seguiram um mestrado pelo Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, sob orientação de especialista na obra osmaniana, Sandra Nitrini. Esse trabalho todo rendeu duas publicações em livro, uma em que participei, ainda durante o período de IC, com um ensaio breve, Marinheiros de Primeira Leitura, de 2004, e outra em que participei como organizadora, juntamente com o escritor Hugo Almeida – Quero falar de sonhos, de 2014.

Talvez você esteja se perguntando o que tudo isso tem a ver com a oceanografia, não é mesmo? A verdade é que, em 2001, quando passei no vestibular da USP, não havia graduação em Oceanografia nessa universidade, havia apenas os cursos de pós (a graduação surgiu no ano seguinte) e, na época, eu não tinha conhecimento nem desprendimento suficientes para me jogar numa graduação fora do estado. Eu vinha de uma vida de escola pública, no meu núcleo familiar eu seria a primeira a cursar uma universidade, mal conhecia minhas possibilidades (fui saber da existência da USP no meu segundo ano do Ensino Médio – colegial, na época – e só fui ter acesso à internet quando já estava para iniciar a faculdade – internet discada, diga-se de passagem…uau, como as coisas mudaram). Tudo isso pra dizer que escolhi, naquele momento, minha segunda opção de carreira, deixando pra trás o sonho de viver no mar e para o mar. E, fato é, me envolvi com o curso, tudo era novidade e encantamento. Aprendi muito, me envolvi com a licenciatura de forma intensa – já dei aulas de português e de idiomas também -, adoro lecionar, porque adoro compartilhar conhecimento.

Em 2011, com o fim do mestrado, definia-me como professora de idiomas (francês e inglês sendo os carros-chefes dessa minha carreira) e estava bem com isso. Havia encontrado meu companheiro de estudos e de vida, cuidava das minhas plantas, dos meus gatos e… e, bem, comecei a sentir um vazio. Daqueles que fazem buraco na alma. Conhece?

A oceanografia me chamava. Uma parte de mim dizia: mas o que é isso, você está louca? nessa idade? outra faculdade? imagina, se joga nas aulas e fica de boinha. Outra parte de mim só ruminava: continuar o que está fazendo é mais fácil, fato, mas você vai se arrepender um dia de nunca ter nem tentado. E isso eu não queria de jeito nenhum, me arrepender de não ter ao menos tentado. Foi quando criei o blog, em 2014, e em agosto desse ano decidi que prestaria o vestibular, então ingressei numa daquelas turmas de cursinho intensivo. Em 2015 passei no curso e me vi novamente iniciando uma graduação.

Não sei quantos anos você tem, navegante, nem como você lida com as questões da idade, mas a verdade é que no primeiro ano da graduação, além do encantamento certo com tudo, com todas as disciplinas, com os laboratórios, com os professores, tornou-se pensamento constante, quase obsessivo, o quesito idade. Eu tinha o dobro da idade da maioria dos meus colegas de turma. E eu sei que isso não deve ser barreira, que há pessoas mais velhas com mentes muito mais abertas e plásticas do que muitos jovens por aí. Mas pra mim, mulher, na casa dos trinta, foi um verdadeiro tormento particular. E isso porque os colegas nunca pareceram me tratar com qualquer distinção quanto a isso, pelo contrário, sempre me senti muito querida e acolhida. O problema maior é que pra muita coisa eu não tinha mais paciência: lista de chamada, sermão de professores, algumas avaliações que deixavam a desejar (meu olhar de professora me fez espernear em vários momentos, tudo mentalmente, claro), carteiras desconfortáveis… Não desisti, porém. Nunca fui de desistir. Talvez isso seja até um mal, de certa forma, porque me forço muitas vezes a levar projetos adiante, mesmo que não me façam mais feliz, simplesmente porque os comecei e preciso terminar. Enquanto esse burburinho todo de pensamentos me atormentava quase que diariamente, eu consegui lidar com outros tantos percalços, em especial as disciplinas de cálculo e de física (Física I me levou à terapia pela primeira vez na vida). Perdi as contas de quantas vezes chorei de frustração diante de uma equação. Mas nunca abandonei equação nenhuma. Conclui a graduação em 2019, sem recuperações ou DPs (não que isso seja grande coisa; mas considerando meu trajeto de Humanas e minha formação precária em disciplinas de exatas, considero isso como uma pequena vitória pessoal).

Durante a graduação conheci muita gente bacana, incluindo dois dos meus melhores amigos, visitei lugares belíssimos durante as disciplinas práticas, embarquei em navios de pesquisa, fiz três ICs (Fapesp e Fusp), participei de algumas publicações de artigos, e não abandonei este blog (apesar de tê-lo deixado meio às moscas em vários semestres críticos). E em setembro deste ano comecei meu doutorado em oceanografia geológica, sob orientação do professor Michel de Mahiques.

Contando assim, nem parece que as coisas foram tão difíceis, né? É verdade que sempre contei com apoio do meu marido, dos meus colegas, dos professores, do meu orientador. Apesar de ter trabalhado durante toda a graduação, meu trabalho como professora particular e pesquisadora (durante as ICs) me permitiam sempre ter uma maior mobilidade de horários (ainda que durante os primeiros quatro anos eu tenha saído de casa todos os dias às 5h30 para pegar ônibus menos cheio e poder realizar as atividades de laboratório com maior tranquilidade). Reconheço os privilégios que tive e tenho. Mas, hoje, refletindo sobre este meu percurso, não posso deixar de observar a existência de alguns monstros internos. O primeiro deles já mencionei, a idade. Estou com 38 anos (logo mais, 39) e acabo de iniciar um doutorado. Isso me assusta um pouco. Especialmente quando me dou conta de que não tenho ainda um objetivo profissional muito claro. Como eu disse, amo lecionar, logo, o trajeto mais seguro seria o acadêmico, em busca de, um dia quem sabe, me tornar professora nalguma faculdade de oceanografia. Confesso, porém, que nunca me vi professora nesse nível. Amo lecionar e ponto. Na esfera universitária os compromissos do professor vão além. Não me sinto preparada pra isso e, vamos lá, já estou chegando nos quarenta e não me sinto preparada pra isso, repito.

Aqueles maravilhosos intercâmbios que alguns colegas conseguiram ou estão conseguindo realizar e que, acredito, são essenciais para a construção de uma base sólida de aprendizado, me parecem fora de questão. Ao menos os mais longos. Não me vejo longe do meu marido e gatos por mais do que três meses (já cheguei a ficar um mês distante e foi um baita sufoco emocional).

Gosto muito da pesquisa que estou desenvolvendo. Aliás, vou tentar resumir aqui o que estudo no doutorado: você, navegante, deve saber que se nos distanciamos da costa, navegamos por sobre a plataforma e, se continuamos a nos afastar, atingimos a superfície da coluna de água que recobre o talude – sempre representado em figuras esquemáticas, com exagero vertical, como sendo uma rampa do fundo marinho que vai da plataforma até o sopé. Pois bem. Foram coletadas amostras de sedimento depositado nessa região de talude de quatro bacias (pense numa bacia mesmo – exagerando aqui a imagem, claro) ao longo das costas do Brasil e do Uruguai: bacias de Campos, Santos, Pelotas e Punta del Este (de norte pra sul, respectivamente). O meu trabalho consiste, atualmente, em identificar as assinaturas geoquímicas (as características distintivas) dos sedimentos de cada bacia, reconhecendo potenciais influências de fontes como o Rio da Prata, avaliando, para isso, as interações com a circulação de correntes e massas de água. Para isso, preciso fazer análises químicas em laboratório, para identificar especialmente os metais presentes nas amostras e, posteriormente, com os dados em mãos, realizar muitas e muitas leituras de trabalhos publicados nessa área (as leituras, na verdade, já acontecem desde antes de ter esses resultados), tratar os dados estatisticamente, estabelecer uma conversa com as referências bibliográficas disponíveis, de maneira a poder elaborar essa descrição das assinaturas. É um trabalho que vai contribuir, acredito, para o reconhecimento e conhecimento do nosso quintal, nosso maravilhoso Atlântico sudoeste. Se comparamos o que se sabe dessa porção do Atlântico com o que se conhece do Atlântico norte, é de nos deixar embasbacados o quão pouco sabemos sobre o que há debaixo do nosso tapete de águas atlânticas. Conhecer é sempre um passo importante para a construção de uma ciência de base (em oposição a uma ciência de ponta).

Enfim, gosto muito desse trabalho, adoro aprender, adoro compartilhar conhecimento, e acredito que meu caminho seja por aí. Mas meus monstrinhos interiores continuam inquietos. Por isso mesmo iniciei um curso voltado para organização, da vida de fato. Preciso aprender a priorizar, reconhecer mais claramente meus objetivos. Mas isso já é assunto pra outro post.

Por fim, uma última reflexão que deixo como mensagem pra você, navegante: nunca se compare com os outros, não menospreze seu percurso porque fulano ou ciclano fizeram assim ou assado. Compare-se sempre a você mesmo. Onde você estava ontem? Onde está hoje? Como disse Hemingway: “There’s nothing noble in being superior to your fellow man; true nobility is being superior to your former self.

É isso. Espero que você tire algum proveito desse post enorme.

Vou ficando por aqui.

Grande abraço e excelentes navegações.

Rô.

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